quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Barcos Engalanados Coloriram o Sado e Pediram Sorte à Padroeira - Noticia de 2004

Durante três dias milhares de pessoas encheram as margens do Sado, na Península de Tróia, para viverem mais uma festa em honra da senhora do Rosário. Discreta, quase íntima na sua vertente familiar passada à volta de tendas e patuscadas, esta tradição da comunidade piscatória do estuário sadino vira-se à cidade no seu último dia e transforma-se num cortejo cheio de cor e alguma fé.
Pouco faltava para as 16h30 quando os barcos se começaram a alinhar na Caldeira para dar início ao momento mais emocionante das Festas de Nossa Senhora do Rosário de Tróia.

Já no século XVI se fazia referência à festa de Santa Maria de Tróia. Por este nome depreende-se que as festividades foram sempre dirigidas a Nossa Senhora, mas com invocações diferentes. Reza a lenda que há muitos anos "havia duas festas, uma dos camponeses da Comporta e do Carvalhal, e outra dos pescadores de Setúbal". Mas, conta Armando Oliveira, presidente da comissão organizadora, houve uma altura em que a primeira acabou e houve um interregno na dos pescadores. Foi nesse período que um pescador vinha de regresso de Tróia em direcção a Setúbal e fez-se um ciclone. "O homem abrigou-se debaixo do nicho de Nossa Senhora, salvou-se e garantiu que a festa não se deixaria de fazer a partir daí". Assim foi, pelo menos durante uns anos, já que mais tarde houve nova interrupção e foram os sacristães de Santa Maria, de São Julião, de São Sebastião e da Anunciada que retomaram a festividade, há 75 anos.

Este ano, coube à "Jonas David", a maior e mais recente embarcação de pesca de Setúbal, o privilégio de transportar a imagem que protege os pescadores do desgosto e da má sorte. "É uma grande responsabilidade", confessou o mestre Manuel Biscaia, enquanto a contemplava saindo da velha capela da Caldeira de Tróia - uma larga baía recortada no interior do estuário do Sado, junto às ruínas romanas.

Ali esteve a receber os pedidos, as velas, as confissões, durante os três dias da festa, para ontem seguir na proa de uma procissão que todos os anos junta mais de uma centena de embarcações engalanadas e emociona quem, nas margens do Sado, a vê passar.

Saindo de Tróia ruma-se ao Hospital Ortopédico de Sant'Iago do Outão, onde os doentes esperam nas varandas para acenar à Senhora do Rosário. Em cima do "Jonas David", o Bispo de Setúbal, D. Gilberto Canavarro dos Reis, reza pelos que ali sofrem, para logo a seguir dar lugar à alegria da banda que também segue a bordo. Foguetes irrompem pelo ar a cada instante, anunciando para Setúbal que a procissão está prestes a chegar.
E assim se vão juntando centenas de pessoas ao longo da margem, crentes ou simples curiosos, elevando os lenços brancos, lançando flores ao rio em memória dos que morreram no mar, velando as lágrimas, sussurrando orações. De quando em vez, os barcos alinham lado a lado voltados para terra, como que devolvendo os cumprimentos nos olhos das pessoas.

É assim todos os anos, e assim deverá continuar a ser, mesmo que a pesca vá perdendo o peso que outrora teve nas gentes de Setúbal. Para Carlos Beato, presidente da Câmara de Grândola - o município a que pertence a península de Tróia - este é também um evento com um "grande peso turístico, que infelizmente não tem a visibilidade que deveria ter".

Para os pescadores, o mais importante é não deixar morrer a tradição centenária. António José "Pataca", 65 anos, já não levou o seu "Esperança em Deus" este ano, mas nem por isso deixou de marcar presença naquele que considera ser "o maior e melhor círio de Portugal", que ainda não perdeu a esperança de ver transmitido na televisão.

"É muito barco. É lindo", descreve, comovido. De Nossa Senhora, o mestre Pataca garante ter tido protecção "mais do que uma vez", em situações difíceis no mar. E por isso volta sempre, para pedir "saúde e sorte para todos". O mesmo vem pedir a cunhada, de 73 anos, que "desde sempre" conhece as festas de Tróia, ainda do tempo em que as tendas do acampamento eram feitas com as velas dos barcos.

Agora já não bem assim, que o areal da caldeira enche-se no fim-de-semana da festa com tendas organizadas por grupos de familiares e amigos e muitas vezes instaladas em círculos fechados frente à embarcação a que estão ligados. Os que não conseguem espaço nas imediações da capela recorrem a uma área de campismo criada para o efeito junto à estrada que vai de Tróia à Comporta e que é servida por um autocarro, praticamente o único veículo autorizado a aproximar-se do local da festa. O trajecto de dois ou três quilómetros é feito em sistema de vaivém e é gratuito.

"Enquanto tiver perninhas, hei-de vir, até morrer", garante a mulher de um pescador que morreu no mar há mais de 40 anos. "É uma fé muito grande que temos cá dentro", confessa.

Uma fé que vai ter de esperar mais um ano, até às primeiras semanas de um novo Agosto, quando as marés voltarem a permitir que os barcos de maior porte possam entrar na Caldeira. Uma fé que vai passando de geração em geração, mesmo que o percurso da procissão já seja feito de mota de água.

E assim se vão juntando centenas de pessoas ao longo da margem, crentes ou simples curiosos, elevando os lenços brancos, lançando flores ao rio em memória dos que morreram no mar, velando as lágrimas, sussurrando orações. De quando em vez, os barcos alinham lado a lado voltados para terra, como que devolvendo os cumprimentos nos olhos das pessoas.

in jornal Público, 03 de Agosto de 2004 – texto de Cláudia Veloso
http://www.geocities.com/j.aldeia/barcos/nsrosario_troia.html

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